Tecnologia

Exagero de tecnologia deixa crianças e adolescentes desconectados do mundo real

O Brasil já conta com 22 milhões dos chamados nativos digitais, nascidos e criados a partir da década 1980, na era dos games e da internet. Contrariando prognósticos de que a tecnologia apenas ajudaria a multiplicar informações e o círculo de amizades, muitas crianças e adolescentes nunca estiveram tão desconectados do mundo. Parecem hipnotizados por seus aparelhos móveis, perdendo a vontade de estudar, de brincar ao ar livre e até de conversar entre si e com os familiares, sem intermediação das telas. É o que mostra a partir de hoje série de reportagens do EM sobre o problema, que tem levado especialistas a alertar pais para o abuso e a falta de controle dos adeptos. Segundo estudiosos, muitos jovens já apresentam sintomas de vício em eletrônicos, como  a queda no rendimento escolar, a insônia e o nervosismo sem causa aparente.

O uso patológico dos videogames já é mencionado na quinta edição do Manual Estatístico e Diagnóstico dos Transtornos Mentais, espécie de cartilha da psiquiatria, lançada em janeiro. A “dependência de internet” está a um passo de se tornar a mais nova classificação psiquiátrica do século 21. “Na China, tornou-se problema de saúde pública, com a abertura de 150 centros de tratamento para dependentes de games. No Brasil, muita gente não sabe que a dependência virtual é um problema”, alerta Cristiano Nabuco, coordenador do Grupo de Dependências Tecnológicas do Programa Integrado dos Transtornos do Impulso (Pro-Amiti) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).

Apesar de ainda não ter status de doença, o termo net adicction foi cunhado pela professora norte-americana de psicologia Kimberly Young, em 1996, para designar usuários que abusam da rede mundial de informações. Ela e outros especialistas renomados tentam estabelecer o padrão a partir do qual os usuários começariam a desenvolver a dependência. A média de uso semanal daqueles que preencheram os critérios para dependência foi de 38 horas semanais, algo em torno de quatro a 10 horas por dia, aumentando para 10 a 14 horas nos fins de semana.

Calcula-se que a cada cinco crianças e adolescentes, um sofre de um transtorno que necessita de tratamento especializado por se tornar antissocial, sofrer de insônia e apresentar queda no rendimento escolar. Por mês, quatro novos casos de compulsão por games batem à porta do consultório do psiquiatra José Belisário Filho, em Belo Horizonte. “É preciso entrar com medicação em alguns casos. Mas, felizmente, em outros é só uma questão de reorganizar o sono e melhorar a atividade física”, diz o médico.

J.P., de 14 anos, passou por quatro psicólogos e chegou a ser expulso de seis colégios de BH até receber o diagnóstico. “Sou prova de que existe o vício. Não conseguia me controlar, discutia muito e deixava de fazer tarefas para mexer no computador”, reconhece o garoto, que se sente aliviado com o monitoramento familiar. Há um ano e meio, ele foi medicado contra ansiedade e, com ajuda da mãe, reduziu a frequência de acesso aos eletrônicos.

Mãe e filho sofreram para chegar a uma combinação de horários para o uso de tecnologia. No início do processo, ela teve de instalar um programa de controle no computador, além de senhas no celular. “Hoje, já posso deixar a senha com meu filho”, conta a fisioterapeuta A., aliviada.

(foto: Beto Magalhaes/EM/D.A Press)(foto: Beto Magalhaes/EM/D.A Press)

De olhos bem abertos – Paciência, conversa franca e muitas ‘combinações’ com os filhos. Na fase de transição tecnológica, especialistas alertam que a família precisa lançar mão de todas as armas disponíveis para garantir uma relação saudável dos jovens com computadores, smartphones e videogames, sem efeitos ruins sobre a rotina deles.

Na última semana, um pool de cientistas das universidades de Harvard (EUA), Oxford, Cambridge e Manchester (Reino Unido) informou que as novas gerações estão dormindo duas horas a menos, em média, na comparação com a década de 1960. Um dos motivos é o efeito da luz azul (blue light), emitida de forma quase imperceptível pela maioria dos aparelhos de tela, que ‘impede’ o usuário de desligar os equipamentos.

Segundo a explicação dos cientistas, ao chegar na retina, à blue light dá um sinal para o cérebro interromper a produção de melatonina, que faria essa pessoa começar a ter sono. Na verdade, essa substância é um comando para o corpo de que está na hora de descansar . “Nenhuma criança ou adolescente deveria ir para a cama depois das 22h”, alerta o psiquiatra José Belisário Filho.

Diferentemente da maioria dos jovens europeus, que dormem por volta das 21h30, adolescentes e crianças brasileiras retardam cada vez mais o momento de ir para a cama, em função da fixação em novelas, futebol, games e redes sociais. “O cérebro obedece a um ciclo de sono de três horas depois que escurece, por volta das 21h30, e se desliga mais profundamente depois da meia-noite. Quem dorme após as 23h está mais exposto ao vício, tem insônia e não dá tempo ao cérebro para se reciclar”, completa o psiquiatra, que tem vários pacientes adolescentes que conversam com os colegas pelo aplicativo WhatsApp até as 4h da madrugada.

Para ajudar os pais na tarefa de desplugar os filhos, que sempre imploram mais cinco minutos para concluir determinada fase dos joguinhos ou terminar uma conversa por meio de rede social, prolongando-se noite adentro, o psiquiatra ensina alguns truques usados no consultório. “A negociação com o adolescente tem de ser forte. Digo para os meninos que, se desobedecerem o horário de ir para a cama, podem ficar obesos e, para as meninas, que correm o risco de ficar baixinhas. Não deixa de ser verdade, pois o hormônio do crescimento atinge o pico por volta da meia-noite”, explica o psiquiatra, que chega a desafiar os jovens pacientes a medir a própria altura após três meses seguindo as novas regras. Em último caso, é possível impor a regra nos cinco dias corridos da semana e liberar a cobrança no sábado e no domingo.

ALERTA – “A internet está se transformando em arma perigosa contra os meninos”, afirma a pediatra Evelyn Eisenstein, de São Paulo, que assina o livro Vivendo esse mundo digital, em parceria com o professor da USP Cristiano Nabuco.

Segundo ela, os jovens dão sinais da dependência da tecnologia. “Se a criança começa a ficar isolada ou apática, tem queda no rendimento escolar ou muda repentinamente de humor, é melhor ligar o botão de alerta”, diz a pediatra, que recomenda equilibrar as horas de computador com as de esporte e lazer ao ar livre.

Depoimento

E., 13 anos

“Já estava tendo pesadelos”

“Sou viciado em games e acho que é ruim, porque eu já estava tendo pesadelos com os jogos. Eu ficava gritando à noite como se tivesse que passar de uma fase. Nunca zerei um jogo, mas, em vez de estudar, ficava a tarde inteira brincando de Fifa ou conversando com os colegas no Facebook e no WhatsApp. Até que minhas notas ficaram péssimas, e minha mãe me proibiu de mexer no computador. Nos primeiros dias (da proibição), fiquei meio louco, sem saber o que fazer. Foram as piores horas da minha vida. Ficava com a mão vazia, no ar, como se estivesse jogando no manete. Agora, já estou me acostumando.”

Por que as telas podem viciar?

Impacto no sono – O costume de jogar ou conversar nas redes sociais antes de ir para a cama está adiando o horário de dormir. Crianças e adolescentes deveriam se deitar por volta das 21h30, três horas depois que escurece. O cérebro obedece a um ciclo de três horas e só vai entrar em sono profundo depois da meia-noite e meia. Quem adia esse momento está mais exposto ao vício e à insônia.

Luz azul – Os aparelhos eletrônicos emitem uma imperceptível onda azul, situada na faixa de onda entre 460 a 480 nanomilímetros. Ao chegar à retina, a blue light dá um sinal para o cérebro interromper a produção de melatonina, que faria essa pessoa ter sono.

Na verdade, essa substância é responsável por reduzir a circulação de sangue no intestino, avisando o corpo que é hora de priorizar o cérebro, que inicia então a sua ‘faxina’ nos pensamentos e reorganiza as ideias.

Sensação de prazer – Toda atividade que se faz compulsivamente, até mesmo ler um livro com afinco ou checara todo minuto o portal predileto, cria uma motivação bioquímica. Depois de oito minutos, o corpo reage ao estímulo e começa a liberar dopamina, que dá a sensação de prazer. O usuário passa a acessar as telas quando está entediado, como forma de anestesiar sentimentos.

Ilusão de companhia – A tecnologia entra onde falham as relações sociais. Sherry Turkle, autora da obra intitulada Alone together, afirma que, na vida contemporânea, “somos sozinhos, mas receosos de desenvolver a intimidade”.Ao receber muitas ‘curtidas’, o usuário desenvolve uma visão melhorada de si mesmo e cria uma perspectiva muito intensa de conseguir controlar o próprio sucesso.

Sem pensar – Os usuários que não largam seus aparelhos dentro do ônibus, ao atravessar a rua e até no momento de dormir, deitando com o celular embaixo do travesseiro, boicotam a si próprios. Sem intervalos para aquietar a mente, ficam impossibilitados de refletir sobre os acontecimentos do dia a dia e sobre a sua própria vida.A mente de quem “surfa” é agitada.

Déficit de atenção – A leitura no papel permite maior aproveitamento do conteúdo. A geração digital está adquirindo o costume de ler na tela dos tablets e smartphones. O problema é que o padrão de atenção exigido para decodificar e absorver as informações virtualmente é mais ‘disperso’. O uso indiscriminado da tecnologia está levando a uma explosão de crianças com déficit de atenção, que sentem maior dificuldade de ativar outras funções mentais.

DICAS PARA BRINCAR COM SEGURANÇA

  • Evitar jogar logo antes de dormir;
  • Evitar jogos não adequados à faixa etária (os jogos trazem a classificação em seus respectivos invólucros)
  • Pais devem procurar saber de quais jogos seus filhos gostam, para saber a quais conteúdos eles podem estar expostos
  • Evitar jogar mais de 50 minutos seguidos sem fazer uma pausa para alongamento de pelo menos 10 minutos. Alongamentos ajudam a prevenir lesões musculoesqueléticas
  • Evitar o uso de headphone ao jogar, ou deixar o som baixo, pois a audição pode ser prejudicada caso o som esteja alto. O ideal é que a altura permita que se escute quem está ao lado
  • Procurar manter uma distância mínima de 60cm da tela do computador, para evitar problemas de visão
  • Variar as categorias de jogos, testando os diferentes, pode levar o jogador a descobrir um mundo novo e assim desenvolver tipos variados de habilidades
  • Como alguns jogos demandam tempo superior ao recomendado (entre uma e duas horas diárias), é importante ter alguma flexibilidade quanto ao horário. Jogos que demandam mais tempo devem ser praticados nos fins de semana ou nos feriados
  • Os filtros protetores de tela auxiliam muito, contribuindo para a diminuição dos espaços luminosos e aumentando o contraste entre as imagens
  • Pessoas com histórico de epilepsia devem evitar jogar

 

Sinais de alerta
Como identificar se o seu filho está exagerando

  • A criança ou o adolescente começa a apresentar sono irregular, principalmente insônia

  • Queda no rendimento escolar, que pode ser explicado pelo uso abusivo do computador ou por outros problemas de ordem comportamental

  •  Alternância no humor: a criança ri ou chora sem motivo aparente

  •  A criança começa a ficar isolada ou apática

  • A criança fecha rapidamente a tela do computador ou desliga a máquina quando um adulto se aproxima

    Fonte: psiquiatra Cristiano Nabuco e pediatra Evelyn Eisenstein, autores do livro Vivendo esse mundo digital, e estudos dos EUA e Reino Unido.

     

Tablets são liberados no recreio de sexta-feira em escola de BH, que incentiva outros usos que não só o recreativo (foto: Leandro Couri/EM DA Press)

Tablets são liberados no recreio de sexta-feira em escola de BH, que incentiva outros usos que não só o recreativo(foto: Leandro Couri/EM DA Press)

As más notas do menino serviram de gatilho 03para disparar a enérgica reação da mãe. “Não aguentava mais ver meus filhos se transformando nas mesmas máquinas que eles usam. Ninguém mais quer bater bola no quintal, ir à casa dos avós ou passear juntos no parque. Trocavam qualquer programa para ficar grudados nos joguinhos”, compara ela, que já retomou o hábito de tomar o café da tarde na companhia do filho. “Antes, era aquela luta para arrancar alguns resmungos. Notei que E. está mais comunicativo”, revela a mãe, entusiasmada.

PROIBIÇÃO
 – “Sem rumo, os pais estão apelando para a pedagogia obsoleta do proibir, mas, na verdade, ninguém sabe o que fazer nesse momento de transição do avanço rápido e de proliferação das tecnologias”, reconhece o psicanalista Luiz Carlos Brant, professor de Gestão de Serviços de Saúde da UFMG. Ele convida para o debate com pais, professores e alunos, a fim de construir juntos estratégias de enfrentamento do vício na internet. A participação é gratuita, hoje e amanhã, no projeto Inovação Tecnológica na Escola de Enfermagem da UFMG, na região hospitalar de BH. “Todos estamos nos perguntando qual é a maneira de lidar com o certo fetiche em relação à tela. É uma mescla de prazer e dor, igual a coceira. Coçar é gostoso, mas, se coçar demais, fere”, compara.

Para evitar começar a clicar, sem conseguir parar, o professor da UFMG impôs a si próprio alguns limites, que incluem desligar o celular e deixar de verificar e-mails nos fins de semana. “Desenvolvi uma certa ‘emailfobia’, porque perdia boa parte do dia respondendo a um monte de questões de trabalho. Quero meu fim de semana para o deleite, o ócio, a contemplação. Vivemos em uma era de antropofagia tecnológica, em que somos devorados pela tela e, o que é pior, oferecemos em sacrifício nossas noites de sono, nossas férias e dias de folga”, diz.

EXTENSÃO DAS MÃOS – 
Para Andrea Zica, diretora pedagógica do Instituto Libertas, é impossível ignorar a realidade de que os diversos I’s (Ipod, Iphone e Ipad, entre outros) se tornaram a extensão das mãos das crianças. “Esse fenômeno é muito recente e ainda precisa ser mais bem entendido. Mas acredito que negar não é o melhor caminho, porque proibir gera resistência, principalmente entre os adolescentes”, defende ela, que costuma repetir para os alunos o ditado “a diferença entre o veneno e o remédio é só a dose”.

Por outro lado, os pais sentem-se acuados para impor o limite de duas horas diárias em frente às telas (TV, celular, Ipad, computador e games), preconizado pela Organização Mundial de Saúde (OMS). A análise sobre o limiar do abuso tem de ser feita caso a caso. “É preocupante quando a criança usa o aparelho não como uma extensão do convívio, mas como substituição”, explica Zica. Ela alerta que o aluno com perfil mais compulsivo será prejudicado se ficar por duas horas no computador, diferentemente de outro que eventualmente passe 10 horas jogando no fim de semana.

No Libertas, a entrada dos aparelhos é permitida apenas na sexta-feira, durante o recreio. Além disso, a escola cria situações para que os alunos apliquem a tecnologia de modo instrutivo, e não só recreativo, incentivando, por exemplo, a produção de blogs literários e de cartoons.

Na balança

Especialistas recomendam uso equilibrado, para que jovens aproveitem as tecnologias sem problemas decorrentes de exagero

VANTAGENS do uso moderado

Maior facilidade de aprendizado,
Desenvolvimento de habilidades cognitivas e motoras
Melhora na capacidade de orientação espacial
Pode facilitaçar a socialização
Favorece a comunicação e a busca de informações,
Uso de chats (comunicadores instantâneos) beneficia indivíduos mais tímidos e introvertidos

DESVANTAGENS do uso excessivo

Dependência do jogo ou rede social, com dificuldade para interromper o uso.
Aumento do isolamento social
Piora nos rendimentos escolares e acadêmicos.
Prejuízo na rotina.
Baixa auto-estima e menor satisfação com a vida diária.
Prejuízos físicos do usuário problemático, como secura do olho, insônia e desconforto musculoesquelético.

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