Brasil

Cracolândia, o perene flagelo político

A despeito das evidências científicas e experiências internacionais, Doria reedita a malfadada política de impor “dor e sofrimento” aos usuários.

A máquina de propaganda de João Doria resistiu mais que os cem dias do último governo de Napoleão Bonaparte. Não muito além, contudo. Vencida a quarentena que parte da mídia concede aos estreantes no poder, não havia mais como disfarçar a incompetência do alcaide que se vendeu ao eleitorado como atilado gestor. Com o fiasco da intervenção da prefeitura de São Paulo na Cracolândia, até mesmo os veículos de comunicação mais simpáticos à administração municipal começaram a se distanciar do tucano, inofensivo quando fantasiado de trabalhador, mas perigosamente delirante ao impor soluções simplistas à maior e mais populosa cidade da América do Sul.

As forças policiais ainda não haviam concluído a remoção forçada de centenas de usuários de drogas do quadrilátero compreendido entre a Rua Helvétia e as alamedas Dino Bueno e Cleveland, quando Doria sacramentou: “A Cracolândia acabou, não vai voltar mais”. A declaração seria cômica, não fosse o trágico contexto no qual está inserida. A megaoperação realizada pelo governo estadual e pela prefeitura dispersou os dependentes pelas ruas do Centro. O “fluxo”, como é conhecida a cena de comércio e uso de drogas, apenas mudou de endereço. Hoje encontra-se na Praça Princesa Isabel, a menos de 500 metros do antigo território, “extinto” segundo Doria. Outras aglomerações podem ser vistas nas ruas Guaianases, do Triunfo e nos arredores das estações Júlio Prestes e da Luz.

Apresentado ao crack ainda criança e morador da Cracolândia desde 1992, Marcos Antonio de Moura está habituado à vida itinerante imposta pelas abordagens repressivas. “A operação deles dura três, quatro dias, depois desaparecem. Chegam batendo, espancando as pessoas, mandam todo mundo ir embora. Então a gente fica vagando pelo Centro. Um pouquinho aqui, um pouquinho ali. Se não tem droga, tem que correr atrás de outro fluxo.”

Dos lábios inflamados pelo uso constante de cachimbos improvisados, ressoa uma fala pausada, tranquila, contrastante com a agitação das mãos. Com 35 anos de idade e distanciado da família pelo vício, Marcos faz questão de mostrar a carteirinha do programa De Braços Abertos, no qual presta serviços de varrição de rua em troca de moradia, comida e 15 reais por dia trabalhado. Orgulha-se de ter reduzido o próprio consumo diário de 20 pedras de crack para 8, e ressente-se ao ser igualado a traficantes ou a criminosos que atuam na região. “A polícia não quer saber se tem criança, se há algum morador, se todo mundo é noia (viciado), se tem algum trabalhador, não estão nem aí pra nada.”

Há cinco anos, o então prefeito Gilberto Kassab, hoje ministro da Ciência e Tecnologia de Michel Temer, também solicitou apoio do governo estadual para uma intervenção na Cracolândia. A exemplo do ocorrido agora, a “Operação Sufoco”, baseada na política de “dor e sofrimento”, como as próprias autoridades admitiram à época, promoveu uma macabra procissão pelas ruas de São Paulo, com hordas de usuários envoltos em cobertores à procura de droga e a correr dos homens fardados. Durante dez dias, a Polícia Militar prendeu 60 indivíduos e apreendeu apenas meio quilo de crack nas ruas do Centro, o que um único usuário pode consumir em um mês. A Defensoria Pública colecionou dezenas de denúncias de abuso, entre elas a de um usuário que teve o braço quebrado.

Na recente operação, o Departamento Estadual de Prevenção e Repressão ao Narcotráfico da Polícia Civil (Denarc) apresentou 12,3 quilos de crack, 6,5 quilos de maconha, 655 gramas de cocaína, além de uma quantidade residual de haxixe, LSD e ecstasy. Dos 53 detidos, 48 foram presos por tráfico, três adolescentes foram apreendidos pelo mesmo motivo e dois responderão por roubo a uma padaria. Os números parecem superlativos quando comparados aos de 2012, mas são irrisórios diante do contingente de 976 policiais, sendo 480 agentes civis e 496 militares, mobilizados para a intervenção.

Não bastasse, a prefeitura valeu-se de um controverso decreto para demolir imóveis na região, lacrou bares e restaurantes sem prestar qualquer esclarecimento aos comerciantes, e nem sequer publicou em Diário Oficial as diretrizes do seu novo programa, Redenção. Na atabalhoada intervenção, uma retroescavadeira atingiu a parede de uma pensão ainda ocupada, ferindo moradores. Nenhum serviço para acolher os removidos da região estava pronto. Irritada com a ação “desastrosa”, como ela própria definiu, a secretária de Direitos Humanos, Patrícia Bezerra (PSDB), entregou a sua carta de demissão. Segundo ela, o plano original não previa repressão policial, o que levou à dispersão dos usuários e dificultou a aproximação de agentes de saúde e assistentes sociais.

As demolições foram propiciadas um decreto assinado por Doria em 19 de maio, declarando a área “de utilidade pública”. Ou seja, os imóveis poderão ser “desapropriados judicialmente ou adquiridos mediante acordo” para “implantação de equipamento público”. Na avaliação de João Sette Whitaker, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, o objetivo por trás da iniciativa é promover uma “limpeza social” para uma grande intervenção urbanística no local. “Vale observar que, para retirar as pessoas à força, o prefeito teria que ter a imissão na posse expedida por algum juiz, dentro de um processo desapropriatório, o que é impossível ter ocorrido em menos de uma semana. Por sorte, a valente Defensoria Pública de São Paulo conseguiu que a Justiça suspendesse as demolições”, diz o urbanista, ex-secretário da Habitação de Fernando Haddad (PT).

Integrantes do Conselho Nacional dos Direitos Humanos realizaram uma vistoria na região da Cracolândia. O grupo pretende elaborar um relatório sobre a situação e apresentá-lo aos organismos nacionais e internacionais. “Coletamos dezenas de relatos de abusos. Os moradores e comerciantes desalojados foram tratados como traficantes. Os usuários nos mostraram hematomas, escoriações e marcas de bala de borracha pelo corpo. Todos estão receosos de procurar os programas sociais e de saúde, com medo de serem internados à força. Após a dispersão, eles já começam a se reagrupar, como vemos na Praça Princesa Isabel, um misto de feira livre de drogas e de campo de refugiados”, lamenta o advogado Ariel de Castro Alves, integrante do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe).

Ativista da Craco Resiste, movimento que luta por um tratamento mais humanitário aos usuários e dependentes químicos, Marcos Vinícius Maia, de 35 anos, acompanhou de perto a megaoperação policial, iniciada na madrugada do dia 21. “Montaram um verdadeiro aparato de guerra. Embora os traficantes sejam minoria na Cracolândia, os policiais lançaram bombas de efeito moral e efetuaram disparos de bala de borracha contra todos que estavam no ‘fluxo’ naquele momento. Até hoje temos pessoas desaparecidas. Montamos até uma comissão para investigar o paradeiro delas”, relata Maia, formado em Ciências Sociais pela PUC de São Paulo. “Agora, eles estão muito mais desconfiados da aproximação de qualquer pessoa disposta a ajudar”.

Apenas em janeiro de 2014, na gestão do petista Haddad, a prefeitura paulistana buscou enfrentar o problema com uma abordagem não repressiva, inspirada no conceito doHousing First, implementado desde os anos 1980 em diversas metrópoles da América do Norte. A administração municipal passou a oferecer moradia, três refeições diárias, trabalho e cursos profissionalizantes aos usuários de drogas em situação de rua, sem exigir deles abstinência. Decrépitos hotéis e pensões da região da Luz foram reformados para acolher os beneficiários, com liberdade de entrar e sair quando bem entendessem.

De acordo com uma pesquisa da Secretaria Municipal da Saúde, divulgada em 2016, 88% dos atendidos pelo programa afirmam ter reduzido o consumo de crack. O número médio de pedras usadas caiu de 42 por semana para 17, redução de 60%. Além disso, 84% garantiam estar em tratamento de saúde contra a dependência, embora a adesão não fosse uma exigência. Um estudo anterior, da Plataforma Brasileira de Política de Drogas, financiada pela Open Society, já havia apontado o êxito da iniciativa: dois terços dos beneficiários conseguiram reduzir o consumo no primeiro ano do De Braços Abertos.

Um dos idealizadores do programa, o psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, professor da Escola Paulista de Medicina e diretor do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes, da Unifesp, avalia que a prefeitura poderia ter investido mais na atenção à saúde, com o reforço dos consultórios de rua e abertura de um Centro de Atenção Psicossocial mais próximo dos dependentes. Muitos usuários precisavam caminhar até 40 minutos para serem atendidos na unidade da Sé, distante cerca de 3 quilômetros do “fluxo”. Apesar das críticas à gestão petista, Xavier vê um gigantesco retrocesso na abordagem de Doria, a apostar nas internações, tanto as voluntárias como as solicitadas pela família ou as compulsórias, como linha mestra de atuação.

“A internação compulsória tem eficácia baixíssima, a taxa de sucesso é inferior a 10%. O Estado não tem leitos suficientes, então firma convênios com clínicas particulares ou comunidades terapêuticas. Essas internações custam até 50 vezes mais do que o tratamento ambulatorial, mais eficaz”, diz. Segundo Xavier, modelos ambulatoriais possuem uma eficácia entre 30% e 35% quando visam a abstinência completa. No caso de abordagem da redução de danos, a prever diminuição do consumo e retomada do convívio social, a taxa de sucesso chega a 70%.

Não é tudo. Há tempos os Conselhos Regionais de Psicologia têm alertado para as degradantes condições impostas aos pacientes por boa parte das comunidades terapêuticas, a funcionar como manicômios disfarçados. Um dossiê apontou uma extensa lista de irregularidades em 43 clínicas fiscalizadas em São Paulo entre 2013 e 2015, incluindo denúncias de trabalhos forçados, participação compulsória em cultos religiosos, medicalização excessiva, homofobia, agressões físicas e estupros. Dois internos chegaram a cometer suicídio durante o “tratamento”.

A despeito das recomendações de especialistas, Doria insiste na estratégia de conduzir os usuários de drogas a tratamentos forçados. Na sexta-feira 26, o juiz Emílio Migliano, da 7ª Vara da Fazenda Pública, deu aval para o recolhimento de dependentes para avaliação médica durante 30 dias na Cracolândia. No domingo 28, o desembargador Reinaldo Miluzzi, do Tribunal de Justiça de São Paulo, acatou um recurso do Ministério Público e da Defensoria Pública e suspendeu a liminar. Segundo o despacho de Miluzzi, o pedido da prefeitura era “impreciso, vago e amplo, e, portanto, contrasta com os princípios basilares do Estado Democrático de Direito, porque concede à municipalidade carta branca para eleger quem é a pessoa em estado de drogadição vagando pelas ruas da cidade”.

O problema é bem mais complexo do que o tucano pinta. A Pesquisa Nacional sobre o Uso de Crack, publicada em 2013 pela Fundação Oswaldo Cruz, revela que 77% dos usuários desejam voluntariamente se tratar, mas observa que as estratégias baseadas no acesso à saúde e outras necessidades, como trabalho, moradia e direitos sociais, têm tido muito mais eficácia na diminuição do uso das drogas. A prefeitura cogita, porém, exigir testes antidoping para manter os dependentes inscritos nos programas assistenciais do município. Francisco Inácio Bastos, um dos coordenadores do estudo da Fiocruz, é categórico: “Exigir abstinência de todo mundo é, por definição, uma meta não realista, não existe em parte alguma no mundo”.

Mais preocupado com a imagem no Facebook do que em traçar políticas públicas consistentes e eficazes, Doria não para de colecionar fracassos. Nos dois primeiros meses depois do aumento das velocidades nas marginais Pinheiros e Tietê, uma das promessas de campanha do tucano, houve alta de 51% nos acidentes com vítimas em relação ao mesmo período do ano anterior, segundo dados da Polícia Militar. O congestionamento nas vias expressas cresceu em até 75% nos horários de pico, mas o prefeito, afeito a galhofas, atribuiu a piora na fluidez do trânsito ao otimismo da população na economia do Brasil.

Após comprar uma invencível guerra contra os pichadores e grafiteiros, o alcaide paulistano agora posa de spray na mão para traçar rabiscos nos muros da capital. Diz ser preciso diferenciar vandalismo de arte, como se não tivesse apagado os murais da Avenida 23 de Maio e dos Arcos de Jânio, sacrificando obras de consagrados artistas de rua, como Eduardo Kobra, autor de murais expostos na Inglaterra, França, Estados Unidos, Rússia, Grécia, Itália, Suécia e Polônia. Ao centrar as ações de zeladoria nas regiões mais abastadas da cidade, inclusive fantasiando-se de gari e jardineiro, deixou bairros periféricos abandonados. Sem falar na incrível capacidade de afugentar o público da Virada Cultural, completamente desfigurada por sua gestão.

Nada disso se assemelha ao poder de destruição demonstrado por Doria na operação anticrack. Se ao menos tivesse a capacidade de escutar os atingidos e os seus próprios secretários, iria se poupar do vexame. “O que resolveria nossa situação é um diálogo, um local onde nós pudéssemos ficar, onde nós não atrapalhássemos, como eles dizem, a população”, diz Marcos, o veterano sobrevivente da Cracolândia. “Um local para receber tratamento adequado, com ambulância 24 horas, um enfermeiro 24 horas. Não tem isso no Primeiro Mundo?”

Fonte: Carta Capital

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